***Vol. 2, Nº 010 / 2021 - 24/02 (DOENÇA) *Sociedade Rebeca Friedmann

Vó Erlita

Rebeca Friedmann

Amarga ela. Tinha algo para esconder, uma tristeza, uma vergonha. Até se ouvia: – Enquanto ela não for embora, nós não teremos paz. Quando lhe lembravam, ansiavam a sua partida para que, só assim, pudessem cuidar de suas próprias vidas. Não sabiam, porém, que o pertencimento à vida só nasceria quando a exclusão acabasse, e ela entrasse na roda, de mãos dadas em ciranda. Rígida que nem um tronco seco. De tanto se esconder da vida, precocemente morreu e, só então, alcançou a flexibilidade tão almejada. Não estando fixa a ponto algum, pôde finalmente ocupar ambos os lugares: aquele onde a vida estava, e onde não. Foi assim que a morte tornou a sua experiência da viver realmente possível. Sua lembrança ensinou que somos feitos de adversidades, e que é preciso queimar tanto os julgamentos que herdamos, quanto as roupas com as quais nos vestiram.

Viveu encolhida de medo com a impossibilidade da escolha. A dureza era, na verdade, um ensaio, para que ela não se sentisse tão frágil diante de nós, diante de qualquer um. Talvez o seu coração se desmoronasse com um amor que não estava acostumada. Ela acreditava, com raro vigor, que a única saída era ser forte, e aguentar tudo a qualquer preço. Adaptou-se ao egoísmo dos homens, como fazem historicamente as mulheres; e, enfraquecida por eles, separada de seus laços afetivos, cuidou do que podia – para, então, estar fora de alcance e se tornar invisível.

Mas a mulher triste sonhou com uma vida diferente, sem saber que o que almejava era o amor e o cuidado. Hoje sabemos que não estava louca e, aliás, nem era perigosa. Apenas vivia em completo isolamento, num esforço para ser forte por si mesma. Talvez a solidão impediu a dissolução de seu rancor, e o seu desgosto impossibilitou o prazer e a alegria. Com a sua licença, que saibamos encorajar o amor e, humildemente, estendê-lo ao mundo; para que o movimento necessário seja sustentado com acalanto, sem que o espanto impeça a mudança.

Em memória de Erlita Freitas Zetzsche.

Rebeca Friedmann

Musicista (violoncelista)
Ministrante de Cursos em Educação Musical
Idealizadora do “O Movimento do Som”
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