“O passado é uma roupa que não nos serve mais”, a frase de Belchior hoje me atinge e reverbera diferente do que sempre fez. Me lembro de a ouvir na antiga casa em que morava, num bairro onde o tempo parecia parado. Era uma casa antiga e, no tempo da minha infância, ficava à margem da linha do trem, que depois se tornou uma rua e, mais tarde, se tornou uma avenida movimentada (com dois grandes supermercados). Não morei nessa casa na infância, morei quando adulto, eu e minha companheira da época.
Dizíamos que a casa era o nosso aparelho (em referência aos imóveis utilizados pelos revolucionários nos “anos de chumbo”) e, ali deitados no sofá, olhando a parede amarela que eu mesmo pintei (de forma canhestra), ouvíamos Belchior praticamente todos os dias enquanto falávamos sobre militância, sobre cinema e, principalmente, sobre o feminismo de Simone de Beauvoir, que ela tão pacientemente me ensinava, já que – embora eu tenha uma frase da autora tatuada no braço –, muito pouco sabia sobre as suas ideias.
Há um ano, mais ou menos, coloquei uma playlist no Spotyfy e, entre Caetanos e Chicos, veio Belchior. Eu não ouvia mais Belchior, e agora eu estava em um pequeno apartamento sem geladeira, e sem dinheiro no bolso. Em outra cidade, olhando pela janela do 5º andar: uma polaroide desfocada, sem a poesia idílica da casa de paredes amarelas… Não poderia imaginar que, em apenas poucos meses, tudo iria virar de cabeça para baixo. Meu país acendeu a fogueira do fascismo, arranhou feridas históricas que voltaram a sangrar, fomos atingidos por uma pandemia mundial e lidamos com ela de forma pedante. Perdemos a fé no presente, e o futuro se tornou incerto.
Não haverá a reunião de família no réveillon esse ano, não verei a minha irmã andando pela casa segurando a sua batida de abacaxi, não ficaremos em volta da mesa cantando bêbados e desafinados, e não contaremos as mesmas histórias de todos os anos. Ficaremos em casa presos em nossas solidões, buscando as últimas gotas de otimismo para o ano vindouro. Talvez esse pessimismo latente fique para trás, talvez tudo isso daqui a um tempo se torne memória. Talvez, daqui a um tempo, possamos contar aos mais novos como foi viver e morrer neste tempo; mas, uma coisa é inegável, Belchior estava certo… “O passado é – mesmo! – uma roupa que não nos serve mais”.
Ator
Diretor de Teatro
Dramaturgo
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