***VOL. 3, Nº 013 / 2021 – 17/04 (TEMA LIVRE) *Cultura Emanuela Siqueira

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Emanuele Siqueira

Parece que, principalmente nos últimos anos, trabalhar dentro do sistema literário brasileiro é tarefa para uma pessoa salva-vidas, sempre de olho para que ninguém se afogue. A pandemia da covid-19 trouxe ainda mais insegurança para pessoas que editam e, também, para as que vendem os livros, enquanto que uma empresa bilionária estadunidense oferece descontos ofensivos. Para além da ausência de políticas consistentes, as ações vindas do “ministério do homem-da-estante-sem-livros” segue divulgando dados e afirmações levianas, sem a mínima checagem a pesquisas sérias, feitas com dinheiro público.

Na busca de justificativas para retirar a isenção de taxas (conseguida em 1946, graças ao escritor Jorge Amado) a Receita Federal afirmou recentemente que “só rico lê” e que, por isto, o livro deve ser taxado. Só um governo formado por homens que estimulam o comércio de armas pode fazer tal afirmação. Só um ministério comandado por um homem que posa na frente de uma estante sem livros pode ousar fazer esse tipo de comentário. Aprendi a ler em 1993, em uma escola municipal do interior de Santa Catarina. Lá, ainda não há uma única livraria. Meu pai e mãe – motorista e costureira – não puderam frequentar a escola, justamente pelos motivos que livrarias não fazem par com mercadinhos e açougues em cidades pequenas: falta de acesso à educação, por conta de um orçamento familiar limitado (além de questões culturais históricas).

Em boa parte dos rincões do Brasil não existem livrarias, nem institutos federais, muito menos universidades. Nessa cidade onde aprendi a ler com a professora Ely, tinha uma única biblioteca de 40 m², que frequentei duas vezes por semanas durante dois anos. Durante esse período, emprestei livros que li em voz alta para a minha mãe, a pessoa que nunca entrou em uma livraria. A presença de livros – entre comida, roupa e diversão – é dar possibilidades de futuro. Aquele que enxerguei nos olhos de minha mãe, aos nove anos de idade, enquanto lia “A Festa no Céu” para ela. Livros dão possibilidades, e isto um governo genocida não quer.

Emanuele Siqueira

Mestre em Estudos Literários
Crítica de Cinema no Elviras (Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema)
Mediadora no Projeto Leia Mulheres
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