***Vol. 2, Nº 007 / 2020 - 12/01 (FUTURO) *Cultura Emanuela Siqueira

O Passado e o Futuro do Corpo da Mulher Negra

Emanuele Siqueira

Com a suspensão da ideia de normalidade, tempo e espaço pareceram transcorrer mais lentamente nos últimos meses. Os horários são outros, os espaços de “casa” e de “trabalho” se misturaram e, nessa situação, o retorno memorialístico ao passado também se tornou uma condição para o futuro. Retornos ao passado, porém, podem ser perigosos – e não é difícil cair em um saudosismo barato e acrítico, tornando o futuro um lugar distópico e sem perspectiva.

Ir e vir no tempo é uma ferramenta antiga na ficção, além de um sonho tipicamente humano; mas, poucas histórias funcionam tão bem quanto “Kindred”, da estadunidense Octavia Butler. O livro é conhecido por ser um dos primeiros a ser escrito por uma mulher negra em um gênero literário povoado por nomes de homens brancos. Em vez de viajar no tempo em busca de alguma promessa ou resposta egocêntrica sobre linhagens, aqui, a protagonista Dana é enviada ao passado sem o desejo de estar nele. Uma escritora na década de 1970 vai parar no meio da escravidão estadunidense do começo do século XIX e, assim, o antigo desejo de viajar no tempo de homens brancos se torna um doloroso aprendizado sobre a ancestralidade de uma mulher negra, de como o passado implica em não ver o presente (e, muito menos, ficar esperando o futuro) de forma passiva.

Ao deslocar o corpo de Dana entre os séculos de escravidão e liberdade, Octavia Butler propõe uma espécie de acerto de contas. Não apenas a protagonista muda a percepção violenta de seu corpo negro (ocupando espaços diferentes na História) mas, também, pessoas leitoras brancas se obrigam a encarar a sua branquitude, e como ela impõe uma narrativa privilegiada. Escritora e personagem permanecem vivas no processo de escrita, e a pessoa que lê dá sobrevida para um livro publicado em 1979; o qual, continua permitindo que as histórias deem condições de futuros possíveis e, talvez, menos pessimistas.

Emanuele Siqueira

Mestre em Estudos Literários
Crítica de Cinema no Elviras (Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema)
Mediadora no Projeto Leia Mulheres
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