Aos cinquenta anos, para não morrer, eu tive que me refazer. Ao fim de sete dias internada, eu não saí apenas da UTI, onde eu tinha ido parar infartada, mas da desconfortável e opressora categoria de gênero – a masculina – em que eu tinha sido forçada a me enquadrar e a me adaptar, embora sem nenhuma afinidade, pelo simples fato de ter nascido macho, ou seja, com um pênis. A simples transição de gênero tirou de mim toda a minha vida profissional, a minha fonte de renda, desenvolvida por longos trinta anos de trabalho duro. Tive que me refazer, não apenas pessoalmente, mas também profissionalmente.
Dá pra ver que é uma mudança pra lá de grande, em que eu tive que demolir e reconstruir praticamente todas as minhas relações comigo mesma, com as outras pessoas e com o próprio processo civilizatório. Mas todos os enfrentamentos que tive foram mais do que compensadores. Com os pedaços que sobraram de mim depois do enfarto, e com os outros tantos pedaços que fui descobrindo e acrescentando, pacientemente, fiz de mim a pessoa mais inteira que eu já conheci em toda a minha vida.
Vale a pena mudar. Vale a pena ao menos tentar mudar. É impossível uma mudança não dar em nada, por mais catastrófica que tenha sido. O mundo surgido depois da revolução tecnológica, que mudou todo o panorama do mundo à nossa volta, exige que a gente mude, e mude muito, e mude muito rapidamente, tanto no plano individual quanto, muito especialmente, no plano coletivo.
As mudanças no plano coletivo só acontecem a partir da mudança no plano individual. Não adianta nada querer ingressar no futuro com os pés, as mãos e a cabeça fortemente atados ao passado. É como acelerar um carro com o freio puxado. As mudanças coletivas dependem fundamentalmente das mudanças no plano individual. Como dizia Guimarães Rosa no “Grande Sertão Veredas”: “o capinar é sozinho; a colheita é coletiva”.
Psicanalista e Economista
Mestre em Sociologia, e em Administração de Empresas
Candidata a Prefeita de Curitiba
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