Uma democracia supõe muitas coisas, dentre elas: 1º uma multidão capaz de escolha, que se identifica como um mesmo povo (demos); 2º um poder (kratos), tomado por empréstimo por aqueles que são escolhidos para o exercer, ao representar os interesses dos que os escolheram. Muitas coisas são supostas aqui. É ainda pressuposto que as pessoas têm interesses claros, que elas escolhem representantes desse interesse com clareza (e liberdade), e que os escolhidos entendem o que – e porquê – estão fazendo, ao exercer do poder.
Quantas dessas suposições julgamos razoáveis em uma conjuntura como a do Brasil de 2020? Esse conceito de democracia – se é que desde sempre possa ter sido levado a sério – não é, na verdade, uma personagem de conto de fadas? Primeiro: quem garante que o eleitor realmente sabe quais são os seus interesses, se temos provas em contrário o tempo todo? Depois, quem diz que sabendo os seus interesses, as pessoas escolhem pelo voto alguém que os representa de fato, quando vemos tantos projetos de lei claramente contra a maioria (a reforma trabalhista, a desregulamentação do uso de venenos agrotóxicos, a destruição do meio ambiente em nome do lucro imediato de uns poucos fazendeiros, etc.).
Nossa circunstância é ainda a seguinte: temos que repensar a democracia brasileira, temos que entender os mecanismos de exercício de poder, seus obstáculos, seus desvios – sobretudo, o mecanismo pelo qual ele se origina e acumula. Todos os acordos e hábitos do poder estão em cheque, porque o mito que tornava tolerável nosso presidencialismo de coalizão está cada vez menos plausível, e ainda não encontramos outros mecanismos que possam trazer vida a nossa democracia.
O Brasil de 2020 ainda está posto diante da alternativa inescapável: democracia ou barbárie? A partir da – suponho – obviedade da resposta, temos que, novamente, nos perguntar: qual democracia desejamos?
Filósofo
Doutor em Filosofia
Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná
Facebook / Instagram / Lattes
