A primeira vez que entendi liberdade veio como “permissão”, e a senti na pele. Tinha os cabelos, e me faziam – vó e mãe – duas tranças, que viravam um arco no alto da cabeça, preso com inúmeros grampos que machucavam o couro cabeludo. Para dormir havia uma folga, elas eram soltas, mas seguiam tranças intermináveis, pesadas e tristes. Tinha dezesseis anos e não me lembro bem como aconteceu, mas num belo dia minha mãe me permitiu cortar um pouco do comprimento desse suplício e, a esse espanto, mais dois inacreditáveis: fui sozinha à cabelereira, e pude decidir o quanto seria cortado. O corte ficou lindo e acima do ombro; mas, até hoje, do que mais me lembro é da sensação de leveza, e da certeza de que aquilo era liberdade. Deve ter sido algo apenas inconsciente em mim, porque apesar de já ser uma menina muito observadora, ainda não contestava nada. Obedecia sempre e, naquele dia, conquistei minha autonomia sem saber mesmo o que isto significava.
Bem mais tarde, na faculdade, fui entender outras opressões e privações e, também, que havia em nossa Constituição Federal o Art. 5º (dos direitos e deveres) o respaldo legal para buscarmos liberdade e igualdade como povo; porém, também fui percebendo que não era bem assim. Os entraves estruturados numa sociedade – machista, patriarcal, homofóbica e, até mesmo, fascista –, acabavam por dificultar os acessos, mesmo que ao estabelecido. Era preciso lutar sempre, e resistir sempre.
Meus cabelos tomaram gosto, assim como eu, de viver ao pé do ouvido, porque a necessidade de livramento foi aumentando com o passar dos anos. O que concluo nesse tempo todo (longe daquele momento tão meu, tão inocente), é que liberdade é uma luta de todas as liberdades; mas que, antes de qualquer outra, é a luta pelo meu direito individual de, até mesmo, escolher o estilo do corte de cabelo.
Letróloga
Especialista no Ensino da Literatura Brasileira Contemporânea
Autora do Livro de Contos “Lascas Lascadas”
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