Sempre que penso em amor, lembro da tarde em que Ana, um pouco cansada, subiu no bonde. Ana é protagonista do conto “Amor”, de Clarice Lispector, autora que completa cem anos em dezembro de 2020. Também já faz 60 anos que Ana subiu no bonde e continua a se recostar no assento, nos lembrando os perigos de certa hora da tarde, que trazem formas pouco sutis para o amor acontecer.
A partir de uma crise no ato de olhar, a vida de Ana – mulher tranquila, casada, com filhos saudáveis e sempre ocupada com alguma coisa – é composta em uma narrativa que força a pessoa que lê a não olhar apenas para as pernas que passam no bonde (como diria Drummond), mas para aquilo que está parado enquanto o bonde passa. O amor acontecendo no momento em que há fragilidade na narrativa, que cada pessoa conta ou performa para si mesma.
Enquanto esse bonde anda, Ana pensa no destino de mulher que, surpreendida, percebe caber “como se o tivesse inventado”. O problema é que fora de casa, nas tais horas perigosas – em que o pensamento voa para além do sensível –, é quando o espanto arrebata. Eis que, em um momento de descuido, Ana olha para o homem parado no ponto, percebe que é cego e toda a sua existência inventada fica por um fio. Olhar para alguém que não a olha de volta, que não vê as banalidades das aparências, coloca em xeque a sua noção de felicidade e, assim, nós também aprendemos a amar com ela.
Ana e Clarice encenam personagens que descobrem o amor (e a própria existência) em confrontos com um mundo que não depende delas; mas, sim, de suas narrativas que nos olham, como se fôssemos o cego no ponto, aprendendo a amar pelas palavras.
Mestre em Estudos Literários
Crítica de Cinema no Elviras (Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema)
Mediadora no Projeto Leia Mulheres
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